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Uma anónima luz além do óbvio.

Adentrar-se na novela “Adela no País de Ural” de Luis Maçãs López é ser cativado por uma atmosfera onírica e poética com um forte carácter evocativo que nos leva polos caminhos de uma tradição órfica mui antiga, com uma dimensão crepuscular e surreal que nos conecta com os poetas Almada Negreiros, Mário Cesariny, Pessoa ou Herberto Helder, Rimbaud ou Leopoldo María Panero. A narrativa segue os passos de uma mulher, uma livreira chamada Adela que se move numa Corunha imaginal, uma Corunha que possui as ressonâncias de um outro tempo inserido na memória e no sonho. É a Corunha que evoca em nós um tempo mítico onde a inscrição dos nomes reais das ruas e os lugares como Rego de Agua, o Orçã, o hotel Trip pontuam uma realidade exótica na rotina com a que olhamos a nossa própria cidade. Lugar da nossa infância e as nossas lembranças
mais antigas, a nossa cidade acaba por ser assimilada a um condicionamento existencial que acaba por enterrar aquele lugar estranho e entranho a um tempo que, a pouco e pouco, se erige num
monumento funcional dos nosso assuntos e amizades, onde tudo está etiquetado e conhecido. Adela no País de Ural desloca-nos desse topos tão realista e resignado submergindo-nos no lume interior de uma mulher que vive através da memória da sua infância e juventude, imersa na evocação do mistério poético e político da vida. 
A atitude insubmissa no interior do coração de Adela abre-se ao mundo dos poetas, à música, à fraternidade da insubmissão política e a condição irredenta perante um sistema maquinal e inumano que conduz à escravatura, onde a arte, o espírito e a gratidão da vida são consideradas duros inimigos do sistema de produção e domínio, de entes obscuros e despersonalizados. Ressoa 1984, essa penosa normalização de um sistema homogéneo e vazio, com neo-língua incluída. 
Mas a novela tem também esse sabor das pequenas relações e encontros humanos, cheios de pequenos absurdos, de retalhos de humor e amor, da relação íntima das pessoas sem heroísmos e vaidades. Uma galeria de personagens anti-heróicos, a viver nas margens de uma sociedade morta de tanta normalidade. Integram-se alusões a discussões de outro tempo sobre o marxismo, as formas de contra-poder, o anarquismo, Althusser, Foucault... 
O País de Ural inscreve-se como uma presença de pesadelo na vida ordinária de Adela. A distopia e o amor são parte de uma mesma cena que se joga num mundo surreal. Este pesadelo funciona como a contraparte especular do mundo atual. Não é uma metáfora do que será mas do que já esta a ser. Através do mundo de Ural apresenta-se-nos a realidade que não podemos ver na realidade ordinária, abduzidos polo falso brilho das luzes artificiais do quotidiano e da fascinação
mediática do poder dominante que como um parasita toma conta das nossas consciências.
Num nível pessoal a leitura de Adela no País de Ural envolveu-me na memória própria de um fio comum com o autor. Originários ambos de bairros corunheses, nascidos nos fins dos anos sessenta, tomamos consciência através da poesia portuguesa da nossa própria memória ancestral.
Num mundo aparente, uma Corunha medíocre, de personagens de galerias comerciais e pequenas conversas provincianas, habita um coração cheio de memórias seculares e lutas de dignidade e
nobreza. Adela no País de Ural combina essa memória unida ao carácter pessoalíssimo de Luís, filólogo e trabalhador do comércio, poeta e observador atente de personagens e figuras do nosso quotidiano que se convertem em símbolos de um mundo que se move no limiar de uma outra existência. Luís Maçãs combina humor, tenrura e rebelião ao mesmo tempo que nos leva da mão de essa alma misteriosa e mágica da nossa tradição popular, meiga libertária da modernidade trazendo
sobre si a consciência dos tempos (dos Três Tempos). Adela é a metáfora, o símbolo e realidade encarnada, através da que podemos intuir a surda luta por recobrar a consciência e a lúcida memória de nós. A história não faz justiça à vivência e à realidade do que foi e do que está a ser. A história só é uma mentira que se repetiu demasiado. E aqueles que pareceram ser os derrotados e esquecidos, erguem-se agora como os vencedores, não desde palcos e cenários fabulosos de ouropel e falsa glória, mas da mão do amor e a compaixão, da palavra compartilhada no sussurro de uma conversa numa residência para idosos, Ángelus Novus da rebelião caridosa e amiga, fraternidade
invisível de todos os bons e generosos.

Por José António Lozano

En Ares, a 14 de Julho de 2020.

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